sexta-feira, setembro 14, 2007

Sonho cadente.

Robertinho estava sentado na varanda de sua casa, como fazia todas os tardes naquele outono. Lia algo em um livro puído quando sentiu algo caindo entre as flores do jardim de sua mãe, não ouviu não barulho nem vira nada, mas sentiu algo como um suspiro e uma queda e foi verificar, movido por sua curiosidade de menino de dez anos.
E havia algo ali sim, era pequeno e discretamente colorido, algumas penas vermelhas, algumas esverdeadas e um longo bico negro. Um beija-flor estava ali entre as folhas secas e a terra preta, e Robertinho soube imediatamente que o pequeno pássaro não estava morto, pois embora se mantivesse imóvel havia uma vibração em seu corpo, quase imperceptível aos olhos, mas que mostrava que ainda havia vida ali.
Muito delicadamente ele o retirou do local de sua queda e correndo pra dentro chamou por sua mãe para que o ajudasse a fazer algo, e ela sempre tão ocupada lhe disse que o animal não sobreviveria.
Vai morrer de fome, ou frio. Disse.
Pois eu vou dar comida e vou esquentá-lo. Disse de volta o menino.
Você vai levá-lo de flor em flor?
Vou...Vou sim!
E foi isso que ele fez.
Por três dias ele mal conseguia prestar atenção no colégio, ignorava as outras crianças e voltava correndo de volta pra casa, para ser as asas de um beija-flor, e isso lhe enchia de uma alegria que desconhecia até então.
Robertinho não era uma criança como as outras. Era infantil, brincava e corria e se sujava como todo menino, mas era um pouco mais calado e sozinho que os outros. Ele mesmo não sabia explicar, mas de alguma forma, em algum lugar ele sabia que não era só uma criança, ele adivinhava que “estava” criança, sabia que isso terminaria logo e então não tinha tempo a perder querendo ser adulto, ou imitando os mais velhos.
A infância era a coisa mais importante, e ele se dedicava de coração a ser a criança mais pura, mais cristalina. Mesmo que isso o isolasse um pouco.
Talvez isso tivesse algo a ver com suas mãos grandes e rudes, que não combinavam muito com seu tipo magro e franzino, eram mãos de pescador.
Chegava em casa correndo e retirava o pássaro de seu ninho improvisado de camisas velhas e meias, aquecido por duas lâmpadas de 25W e corria ao jardim. Rosas brancas, Cravos e Hibiscos ofereciam um manjar aos dois, que ficavam por horas ali, aproveitando aquele Sol Enganador de outono e a companhia quente um do outro. E como era admirável ver sair aquela longa língua branca do bico tão fino e tão negro, buscando o precioso néctar das flores.
Na noite do terceiro dia Robertinho dormia e sonhava.
Sonhava que estava em algum lugar nas planícies ao longo do Rio Amarelo, com suas grandes mãos sujas e fortes, quando sentiu sobre si um vento e um ruflar, algo como uma vibração, que ele já conhecia, só que amplificada uma centena de vezes e quando olhou para cima viu seu amigo beija-flor. Estava enorme, um gigante pairando no ar e seus olhos negros, que agora ele via bem, eram profundos e afetuosos. Suas asas brilhavam como se cobertas por milhões de escamas das cores que só os sonhos podem conter e o pássaro falou com ele.
Liberte-me.
E o coração do menino deu um pulo em seu peito, desfazendo seu sonho entre névoas mas ele ainda pode ouvir um pouco mais.
Liberte-me e voe comigo...
Robertinho pulou de sua cama e correndo ao ninho improvisado confirmou o que já sabia. O beija-flor havia morrido. Aquela vibração mágica não existia mais, só restando aquele corpo que lhe pareceu ainda menor e mais frágil que antes.
O retirou com toda delicadeza, e fez pra ele uma cama de flores e folhas secas escolhidas com cuidado, no mesmo lugar de sua queda original.
E enquanto o sol nascia ele viu os últimos brilhos sobre suas asas coloridas se apagarem e o corpo se tornou opaco, e Robertinho o enterrou para que não fosse carregado pelas formigas.
Chorou sozinho no quintal, em seu primeiro enterro, na morte de seu primeiro amigo, um que o ensinou a ter asas.
A “ser” as asas de um beija-flor e Robertinho nunca mais o esqueceu.


...dedicado ao meu amigo que não tem asas mas que voa alto com suas mãos de cantonês...
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