quarta-feira, junho 21, 2006

A flor.

7:00h, am. O relógio desperta no criado mudo.
“Saco”, pensa Vinícius, o primeiro pensamento do dia, e que se repetirá muitas vezes até que se deite de novo, e lhe ocorra pela última vez antes de pegar no sono. O despertador lhe irrita com aqueles bips monótonos que vão ficando mais altos a cada repetição, feitos para não irritarem as pessoas. Toca o crucifixo em seu peito e ele está gelado e pesado, as paredes de seu quarto com pôsteres de filmes parecem menores e abafadas, mais um dia como qualquer outro.
O café da manhã é rápido e aborrecido, pois sua mãe já está acordada a algumas horas, ouvindo uma rádio de fofocas de novela e com uma roupa de ginástica que lhe fica no mínimo ridícula. Mas todas aquelas anfetaminas devem estar afetando seu cérebro ávido por dietas milagrosas e receitas imbecis.
Ela fala o tempo todo, sobre qualquer coisa, não importa.
Vinícius faz cara de interessado, e boceja enquanto acaricia sua cicatriz sobre o supercílio direito, que lhe deixou uma falha na sobrancelha. Fora um milagre todos disseram, Ter sobrevivido ao acidente. Pois bater de carro com tudo, em uma parede de pedra, ficar cinco dias em coma e passar por uma cirurgia no cérebro, sem Ter seqüela alguma além daquela que o faz se parecer com o Vanilla Ice, era um verdadeiro milagre. E todos fingiram que foi um acidente, e nunca mais tocaram no assunto, e isso foi o suficiente para que ele também não dissesse mais nada a respeito. Tudo continuava como sempre.
O caminho até a faculdade era rápido e sem surpresas, e ele caminhava apenas interessado no canto dos pássaros que ele nunca via, lhe pareciam fitas tocando repetidamente, e essa idéia o divertia.
Estudava história em uma federal e isso era sinal de que seus companheiros de turma eram alguma coisa entre hippies de butique e intelectuais de esquerda filhos de industriais. Poucos se salvavam e ele fazia questão de usar sua camisa “KILL ALL HIPPIES” para mantê-los afastados e era isso o que faziam.
Seu único amigo era Marcelo, que assim como ele não era o senhor popularidade, sempre com barba por fazer e meio curvado. Mas era o único que o fazia rir e tocava violão muito bem, apesar de ser fraco para bebidas o que o desqualificava para ser um verdadeiro boêmio carioca, pois sempre vomitava, um vexame.
Suas conversas eram sempre discretas, porém era divertida a maneira com que Marcelo sempre tentava animar Vinícius com suas histórias malucas sobre paixões relâmpagos e porres de três doses de qualquer bebida destilada, eram amigos embora não se conhecessem a fundo e não freqüentassem as casas um do outro. Ele era o único que sabia a verdade sobre as cicatrizes de Vinícius e sobre seu humor e suas dificuldades.
A novidade da semana era a seguinte, Marcelo estava enlouquecido por uma menina da turma, Clarissa, e não fazia nada além de pensar nela nas últimas três semanas, mas sua falta de jeito com as mulheres o mantivera longe dela. Era uma menina bonita, muito bonita na verdade, com cabelos pretos longos demais, um pouco desgrenhados e olhos azuis brilhantes sobre lindas olheiras, o problema é que apesar do corpo bem feito sempre parecia desleixada, pois suas roupas não lhe caíam bem, por pura afetação pensava Vinícius, pois a vira em uma festa certa vez e ela parecia bem natural com um vestido longo e saltos altíssimos. Era o tipo “filha de hippies velhos”, e estava sempre com camisetas de lugares como Maromba, Trindade e São Tomé das Letras, um clichê ambulante e fingindo que não fazia questão de ser linda.
Naquele dia as coisas iriam mudar, pois Marcelo tinha uma surpresa para ela, que a faria cair de quatro por ele, uma idéia muito simples e antiquada, uma flor.
Vinícius sorriu e soprou a fumaça daquele primeiro cigarro para o alto, viu a sinceridade nos olhos do amigo e teve pena, pois soube que ele estava realmente convencido de estar apaixonado por ela, uma garota que nem sequer olhava pra eles.
Estava sentado em sua carteira coçando sua cicatriz quando olhando para o lado, viu sobre livros e uma bolsa esfarrapada uma rosa, perfeita e vermelha, sobre um envelope. Clarissa devia estar sentada ali e enquanto pensava sobre isso alguns idiotas, correndo e se empurrando, trombaram com a carteira da flor, jogando tudo no chão. Vinícius disse alguns palavrões e se abaixou para arrumar tudo, colocando tudo mais ou menos como estava anteriormente, ajeitou a flor sobre os livros e voltou a sua rotina, o olhar meio borrado e sua mão sobre a sobrancelha.
A aula iria começar, longas digressões sobre nada, distraidamente olhou para o lado e ficou surpreso em ver Clarissa, lhe olhando fixamente. Tinha a flor nas mãos e seu olhar estava fixo nele, dardejante e algo marejado. Vinícius ficou constrangido e desviou o olhar casualmente, fingindo indiferença, disfarçou um pouco e ao olha-la novamente a viu na mesma posição e ela definitivamente chorava. Que tipo de mulher louca ganha uma flor e chora?! Ele se perguntou, irritado, e era do Marcelo que ela deveria sentir raiva, pois foi essa a impressão que ele teve naquele momento.
O que ele fez foi ignora-la pelo resto daquela aula interminável e rezar para não tomar uma bofetada, pois poderia reagir e aí seria um caos completo. Mas ela se levantou prontamente foram dispensados e saiu da sala. Aliviado Vinícius relaxou a vendo sair com aquele andar agitado, e reparou que ela tinha de fato uma bela e redonda bunda. Virando-se de volta para o local onde ela estava sentada sentiu seu coração gelar quando viu que tinha se esquecido da carta, do envelope que estava sob a rosa e que estava agora sendo pisoteado por aqueles pregos. Pegou o envelope amassado do chão e quando pensava em sair correndo atrás dela foi seguro por Marcelo, com os olhos arregalados e suarento.
E aí? Ele perguntou, - E aí o quê? Respondeu Vinícius, escondendo o pequeno envelope em sua mão fechada.
Porra! O que ela fez quando viu a flor?
Sei lá, ficou meio bolada, acho que ficou foi é muito puta pois os olhos dela ficaram cheios de lágrimas, acho que chorou mesmo.
Caralho! Ela ficou emocionada seu verme! Tu não saca nada de mulher mesmo. E o bilhete?
Não sei...Não fiquei reparando cacete.
Deixa pra lá cara, agora é só esperar que ela tá no papo! Vamos beber pra comemorar.
E Vinícius foi arrastado por Marcelo até um boteco bem fuleiro que ficava logo ali perto e após duas garrafas de cerveja ele já estava chorando seu amor por Clarissa e contando como seria sua vida feliz ao lado dela. Vinícius ficou olhando para o amigo e enquanto sentia o bilhete amassado em seu bolso, não podia deixar de achar estranho alguém sentir amor e falar sobre isso de maneira tão natural, sentiu algo vazio em si e alguma coisa como uma pequena inveja se arrastou sob seus pés.

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