quarta-feira, novembro 18, 2009

Verde era sua cor preferida.

Aurora era uma adolescente típica. Isso para uma menina de dezesseis anos que tinha o nome de sua bisavó, do qual ela muito se orgulhava, mas só há pouco tempo, pois sempre tivera vergonha de ter um nome de velha. Empoeirado.

Usava o cabelo comprido, com brincos de pena de pavão que comprou de um hippie gente fina e aquelas saias indianas louconas. Era inteligente, mas preguiçosa, fumava e bebia escondido, mas tinha nojo de cachaça e gostava de meninos, sempre os meninos deixando-a louca e apaixonada.

Escrevia uns poemas sobre golfinhos e viagens, uma evolução do seu nostálgico diária e estava começando a se interessar por fotografia e cinema. Era um clichê. Jovem, entediada e feliz.

E com isso tudo na sua cabeça o local menos provável de se encontra-la era o colégio, com suas caretices e rigores sociais. Como sua família tinha dinheiro, todos a tratavam com cerimônia, o que a deixava mais irritada ainda, com menos vontade de assistir as aulas.

Um dia vagando pela cidade, no interior do estado, enquanto se libertava da matemática, ficou acompanhando laconicamente a montagem de um circo, com sua enorme tenda vermelha remendada. Um daqueles circos do interior, pobres, patéticos. Ela ficou instantaneamente apaixonada. Voltou no dia seguinte e alguns artistas já ensaiavam e a notaram, logicamente. Pois era bonita, e embora largada era rica, e as pessoas que nascem ricas têm aquela aura particular que todos notam, especialmente os famintos.

Havia alguns palhaços, um atirador de facas fajuto, truques com cães amestrados, malabaristas, mas ela não vira o mágico. Será que não tinha mágico? Circo sem mágico não é circo, pensava Aurora.

No terceiro dia ela tomou coragem e perguntou ao domador de poodles se o circo não tinha mágico. Faltava um dia para a estréia e ela não tinha visto nenhum ainda. O domador, que tinha um sotaque do interior do Brasil, disse que tinha mágico sim, e dos bons, mas infelizmente não haveria muitos truques, pois ele estava sem ajudante, já que a sua havia sido internada às pressas com apendicite aguda, o que era uma pena. E nesses três dias, Ramiro, seu nome, havia ficado perambulando pela cidade procurando uma substituta, sem sucesso.

Aurora ficou estática, sua boca ficou seca e sentiu seu coração dando arrancos no seu peito magro. O rapaz falava mas ela não ouvia mais nada, só se via com uma roupa espalhafatosa, sendo cortada ao meio por um homem de cartola e capa preta com forro vermelho.

- Eu quero! Eu topo! Adoro mágica, sempre adorei, sei fazer uns truques com cartas!

E o domador estava sendo sacudido por ela, assustado.

- Calma menina, calma. Espera o Ramiro voltar, e se não tiver arrumado ninguém, você pega a vaga. Já falo logo, que não paga muito hein! Você é de maior, né?

- Mas, claro... Disse ela com seu sorriso encantador número 3. E ele sorriu de volta. Nunca falha.

Após quarenta longos minutos, intermináveis, ela vê chegando um homem magro e alto, com um andar estranho, blusa florida estampada aberta no peito, cabelo preto cheio de goma, um indefectível bigodinho e um cigarro no canto da boca. E a cicatriz, que ia da testa até a bochecha, rasgando o olho esquerdo.

- Seu Ramiro? Sua voz tremia.

- Hum...

- Conseguiu ajudante?

- Tsc. Tsc.

- Então acabou de conseguir!

E quando o homem sorriu, Aurora quase deu um grito de euforia, pois ele tinha a arcada superior coberta de ouro.

Ramiro era muito melhor que o encartolado da sua imaginação.

- Você é maior de idade?

Sorriso número 3 e um brilho dourado em resposta.

Nunca falha.

A conversa foi rápida e ela foi logo vestir sua roupa charmosa para o primeiro ensaio, naquele minuto.

Infelizmente, eles não serravam mulheres ao meio naquele circo, mas havia a levitação e o truque do desaparecimento, com a cortina preta.

Uma das trapezistas, mal humorada com um cigarro na boca, foi levá-la ao vestiário com cheiro de mofo e a única roupa que lhe servia foi um maiô verde, meio puído. Com dezesseis anos ela não era alta mas tinha as pernas compridas e os braços finos e nada lhe ficava bem, mas o maiô até que ficou bacana. Meio enfiado na bunda, mas aquilo era um circo e não uma igreja.

- Eu não gosto dele, sabia?!

-Hein? Perguntou Aurora, com cara de boba.

- O Ramiro, odeio esse povo. Tem parte com o diabo, desconjuro. Por isso a Lúcia ficou doente, todas se fodem uma hora.

- Tá falando do que, porra?

- Do Ramiro, sua burra. Ele é cigano. E fez o sinal da cruz com o cigarro na mão.

Aurora chegou a babar e sua barriga ficou gelada. Um mágico cigano!

- Puta que o pariu! Ganhei na loteria!

Quando foi ensaiar, ela flutuava em êxtase e tudo correu bem. O truque, na verdade, era muito simples, ela se mostrava, sorria, dava uma bela piscadela com seu olho direito e PIMBA! Caía num alçapão e ficava agachada num cubículo esperando a tampa se abrir e TCHARAM! Reaparecia maravilhosa, jogava os cabelos e aplausos, aplausos e assobios.

Ela havia nascido pra isso.

Avisou seus colegas de turma e no dia seguinte o circo ficou lotado de moleques barulhentos. Eles vendiam cerveja barata e cigarros para todos e todo mundo ficava bêbado e fumando, até os poodles estavam com pequenos cigarrinhos sem filtro no canto da boca. Aqueles putinhos empolados!

No segundo dia, seriam só três infelizmente, Aurora tomou fôlego e perguntou para Ramiro se ele era mesmo um cigano.

- É da sua conta? Ele respondeu entre seus dentes dourados.

- Não.

- Então.

- O quê?

- Então cala a boca, menina.

Aurora teve que segurar o choro, com força, coisa que ela odiava fazer, pois sempre lhe dava dor de cabeça.

Arquibancadas lotadas novamente, muita bagunça e adolescentes embriagados. Parecia que a notícia estava se espalhando no colégio, o que não era boa coisa, e isso os obrigou a fazer um bis no seu número de desaparecimento. Ramiro foi à loucura de felicidade.

Depois do circo Aurora ia para sua casa e só fazia esperar pelo dia seguinte, parecia um zumbi, mas um zumbi feliz. Quando chegou ao circo no terceiro dia, avisaram que Ramiro a estava esperando em seu trailer, bateu e ele abriu a porta sério.

- Senta si menina.

Ela se sentou no meio daquela confusão de coisas velhas, fotos amareladas de pessoas estranhas, santos de gesso, velas coloridas e incenso aceso. Parecia algo saído de um filme. Um filme bom com trilha sonora e tudo, música indiana.

Ramiro serviu vinho do porto em uma tacinha de cristal muito delicada e sentando-se ele disse:

- Sou Cigano sim. Mas fui banido.

E em uma hora, enquanto bebiam, ele contou sua história para ela, mostrou suas cicatrizes e a foto da moça morta.

Aurora chorou quieta, suas lágrimas corriam em silêncio, mas por dentro ela queimava com a vida daquele homem.

- Agora você faz parte dessa minha história, Aurora.

- Você pode ler a minha sorte? Você consegue fazer isso, ver o futuro das pessoas?

- Eu sou maldito, Aurora. Eu sei seu futuro, mas não é muito bom. Só vejo as coisas ruins na vida das pessoas, é a maldição.

- Fala.Quantos anos eu tenho?

- Dezesseis.

- Puta que o pariu! Fala logo que o bagulho é legítimo.

- Você não vai se casar, nem terá filhos. Você também não vai ter casa, ou um lar. Vai ficar vagando pelo mundo, sem sossego, pra sempre. Parece até que você tem um pouco do karma do meu povo.

- Caralho.

Suas lágrimas secaram.

- Você tem a boca muito suja, não pega bem. Ele ficara melancólico com as lembranças e a má sorte que lera.

Ela se levantou, tirou o cigarro da boca de Ramiro e lhe deu um beijo, para em seguida dar uma longa tragada no cigarro.

- Você é um cara foda! Muito obrigada!

E naquele último número, enquanto aguardava dentro do cubículo escuro e abafado, agachada, Aurora estava chorando de soluçar.

No seu peito adolescente não cabia tanta emoção.

Sua vida seria maravilhosa, para sempre! Ela tinha certeza agora. Para sempre!

E o alçapão se abre.

Aplausos.

Muitos aplausos.

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