Chovia fino, aquele friozinho desgraçado começava a apertar e do outro lado da rua em um turbilhão de pensamentos, nosso singelo casal embarcava.
Pernas apressadas que transitavam pela rua perdiam alguns segundos a observar aquele casal comum.
Ela encostada no muro sujo e fedorento, e ele quase sentado no chão coberto de um enlodado-verde-viscoso diante da fogueira.
Ambos hipnotizados.
Ela desejando que o fogo lambesse sua perna, ou ao menos parte dela, apenas para ter certeza de que aquele momento era real, para tentar impedir que justo esse turbilhão não se unisse ao misterioso mundo de suas memórias distorcidas.
Ele não se contentava em encostar seus sapatos sujos de terra no fogo, queria tocá-lo, queria senti-lo dentro de sua mão, impedindo que mais uma vez sua memória distorcida se apoderasse de sua mente. Mais ainda, queria provar para Julia que aquele turbilhão todo era real, que o fogo era real, e que o desejo de queimar era ainda mais real.
Lembrava-se de sua infância, ao admirar o fogo.
Desde os 6 anos de idade carregava em seu pequeno-quase-furado bolso: um canivete, um potinho de álcool, um isqueiro e uma caixa de fósforos cheia pela metade, roubada da cozinha de sua aflita mãe – para evitar que o maldito isqueiro o deixasse na mão. E havia pelo menos uns 9 anos que não queimava nada. Ou quase nada.
E o que faziam ali? As pernas apressadas se perguntavam.
Queimavam.
Queimavam relíquias de outrora, bobagens, presentes, restos, lembranças, quinquilharias; queimavam coisas importantes-sem-importância, coisas sem-importância-importantes; queimavam suas vidas.
Mas ele está lá: impresso no peito. Às vezes grita, às vezes misericordiosamente se cala. O passado.
É a lambida do fogo na perna da menina. É a queimadura na mão de Gabriel. E não se consegue escondê-lo. Nem que se deseje com todo fervor. No entanto, acreditem, o terror pior é jamais ser descoberto.
E a chuva fina teimava em não conseguir apagar o fogo, enquanto a fumaça perseguia nossos adoráveis desconhecidos. E se cada um estivesse de lados opostos, a fedida fumaça conseguia sorrateiramente se bifurcar, atormentando os dois.
Mas ambos sabiam que não estavam verdadeiramente atormentados. Esse era o papel da fumaça.
Enquanto Julia olhava a sutileza mágica da fumaça ao se misturar, no céu cinzento e solitário, com a suave e doce névoa do fim da tarde, imaginava – e sabia – que nenhuma daquelas pernas seria era capaz de ver tamanha beleza.
E se lembrava da frase de Scooter: “Bill, o fogo lava as coisas”.
Talvez lave, talvez esconda, ou disfarce, ou quem sabe destrua o que ainda não conseguiu existir ou o que deixa de existir neste derradeiro momento.
Tinha medo de que a árvore pegasse fogo, não era nenhuma defensora da natureza, achava baboseira essa coisa de green peace, mas não queria que a árvore se incendiasse. Era bela demais para isso, além de não ter culpa alguma na história. Talvez nem toda culpa seja vã. Pensava.
E a chuva resolveu apertar, só para molhar seus cabelos ensebados e suas cansadas japonas. Mas não ousavam se intrometer com a simpática fogueirinha. Esta queimou até o fim.
Ela via seu coração queimando na fogueira.
Ele queria que ela o visse se queimando.
Ainda queimavam.
Forever and a day...