O despertador tocou, monotonamente, naquele volume crescente que pretende não te assustar, apenas aborrecer e acordar. Ou vice e versa. A noite foi calma, sem tiroteios, sem gritos, apenas algumas freadas e buzinas e o som da chuva.
É gostoso dormir com chuva, pequenas gotas tilintando na janela, porém é inevitável a antecipação do estresse da manhã seguinte, com engarrafamentos, guarda chuvas agressivos e as canelas ensopadas.
A metrópole tem essa capacidade, até as coisas boas se tornam incômodas, enquanto os incômodos se tornam parte da rotina. Parte da vida.
(“_ Sua vida é uma rotina?”)!
Vestiu-se com seu terno de chuva, escuro e não muito caro, sua capa de chuva importada e a mochila. Deixou o cabelo despenteado mesmo, pois ficaria molhado de qualquer forma. Tomou aquele café cheiroso e negro como asfalto molhado e partiu para o trabalho.
(“_Você devia precisar menos do trabalho para se sentir útil”)!
À porta do prédio, parou. Antecipando o choque com aquela água fria, que acreditava limpa, que caía fininha, suavemente. Ligou seu mp3 player e BUM!
Uma bateria polirritmica, selvagem, dava a sustentação para o sax tenor, furioso, sagrado. Enquanto baixo e piano, pintavam o cenário minimalista das belezas de D’us.
Inconfundível.
Aquele dia começara bem.
Animado pela música celeste que corria por seu corpo, resolveu perder a pressa costumeira e observar o mundo e as pessoas que o enfeitavam no caminho para o trabalho.
(“_Você devia perder sua pressa, e nunca mais achá-la”)!
O céu estava cinza e limpo. Ás árvores tremiam de prazer, os carros, limpinhos, pareciam arrepiados de frio e mal humorados, até o asfalto molhado brilhava, negro como café cheiroso.
No ônibus, a capa de chuva afugentava as pessoas de seu lado, e desastradamente ele pedia desculpas a todos, com a voz meio alta, constrangido por estar tão feliz indo trabalhar. Ouvindo as palavras de D’us em formato mp3 enhanced, sem palavras. Na verdade ele tinha medo de abrir a boca e sair música ao invés de palavras, mas na verdade mesmo ele ficava decepcionado por saírem palavras, ao invés de música.
(“_Você devia falar menos e cantar mais ”)!
Enquanto a paisagem voava do lado de fora, a música voava do lado de dentro e ele ficava imaginando, de forma quase reverente, a alma daquele homem, que era capaz de se expressar de forma tão complexa, tão lírica. Tão bonita que até assustava, como uma explosão galáctica, uma supernova que espalha vida, luz e compaixão, de forma brutal.
Os rostos das pessoas permaneciam ocupados em si mesmos. Queixosos, apressados, entediados, neutros alguns. Aquela expressão de quem espera, sem estar ali, sem consciência alguma, apenas esperando.
Será que eles não sabiam que estavam salvos?
Será que eles não sabiam mais que eles também seriam iluminados e perfeitos um dia? Que a Prisão de Ferro Negra havia sido destruída e que o espírito e o amor de D’us agora andava entre nós?
(“_Você tem que se lembrar da promessa, ela é verdadeira”)!
Ele tinha vontade de abraçar a todos e beijar todas as faces. Todos eram bonitos e perfeitos como ele era.
Naquela hora iniciou um solo de bateria, e involuntariamente começou a gesticular, batendo no espaço, vibrando com os dentes apertados. Notou um movimento na rua, no ponto de ônibus onde estavam parados.
Um senhor negro, de barbinha branca sorria, e acenava um tchau com a mão direita, respondendo talvez às suas baquetas invisíveis.
Ele parou e olhou no fundo daqueles olhos idosos e viu que eles sabiam a verdade, assim como ele. Emocionou-se.
O ônibus arrancou e o velho disse com seus lábios mudos:
_Deus é amor!
Ele pode ler em seus lábios finos.
_Sim, sim!
Ele acenou com a cabeça.
_Um Amor Supremo!
...
O velhinho concordou.
Buda Shakyamuni concordou.
Jesus Cristo concordou.
John Coltrane concordou.
E todos se iluminaram.
Ao mesmo tempo...
(“_ Você pode sorrir livremente, a prisão acabou”)!