A primeira lembrança significativa de Amélia é muito precoce, não tinha
mais do que 5 anos, quando sentiu alguma coisa se movendo dentro
dela, foi como um pequeno rebuliço interno, dentro do peito, um suspiro
pra dentro, circular. Ela não se lembra do contexto, mas a sensação foi
marcante o suficiente para criar um imprint de sua primeira experiência
existencial.
Aos 11 anos se apaixonou pela primeira vez, por um garoto da série
superior, um garoto que ela só via no recreio, mas ele era bonito e
sorridente e isso bastava. Um dia sorrateiramente ela colocou uma
cartinha anônima em sua mochila, num papel de carta clarinho, com
arabescos numa marca d'água, que ela achava muito sofisticado, nada
de ursinhos carinhosos ou cor de rosa. A carta resumia seu encanto
infantil e deixava claro que ele deveria deixar sua resposta dentro de um
livro da biblioteca, um livro complicado com um título que ela achava o
máximo, A insustentável leveza do ser...UAU!
Por um bimestre inteiro eles
se corresponderam anonimamente, e a expectativa de abrir o livro e
achar uma carta a enchiam de alegria e excitação, e a sensação a
assaltava de forma prazerosa e quentinha, mas chegou um dia em que
não houve resposta e as cartinhas dela foram se acumulando dentro o
livro até serem notadas pela bibliotecária mal humorada, um clichê, que
de forma cruel as atirou no cesto de lixo, como se fossem apenas papel,
e não a representação de um primeiro amor, um tesouro inestimável.
Somente com13anos ela pode realmente observar o que acontecia com
ela, dentro dela.
Estava numa daquelas tardes de domingo, chuvosas, úmidas e
intermináveis. O tédio a envolvia como uma névoa pegajosa. Como não
havia nada para fazer e estava cansada de provocar seu irmão, foi ver
televisão e ficou zapeando pelos canais, jogada no sofá, entre almofadas
manchadas e conhecidas. Parou num canal qualquer quando viu uma
imagem de uma praia. Não era a típica praia brasileira, pois não havia sol,
nem pessoas mostrando a bunda. Era um cenário europeu, com uma
longa faixa de areia escura, sem ondas e sem ninguém, somente algumas
aves voando isoladas, o que aumentava a sensação de solidão. Ficou
hipnotizada e sentiu aquela coisa se movendo dentro dela, partindo de algum lugar entre o peito magro e sua barriga branquinha, era alguma
coisa antiga e esquecida, e ela reconheceu que era um vento. Ventava
dentro dela e quando se deu conta desse fato inusitado chorou com a
cabeça enfiada entre as velhas almofadas, chorou por encontrar uma
parte dela que estava enfiada lá no fundo de si mesma, viva e
independente mas que também era ela, foi um reencontro.
Tentou sutilmente dividir essa empolgante novidade com seus familiares,
mas apesar de seu afeto não foram capazes de entender do que falava
aquela menina, que já começava a mostrar um caráter peculiar demais.
Com o passar do tempo Amélia reconheceu as circunstâncias em que
seu vento interior surgia. Era entre ondas de nostalgia e saudade que
alguma coisa se abria e ela ventava, era uma sensação estranha, quase
desconfortável mas que era tão familiar e tão intima, que ela chegava a
cultivar sentimentos melancólicos para abrir sua janela interior e deixar
aquela brisa marinha surgir e tomar conta de seu corpo, as vezes era tão
intensa que Amélia fechava seus olhos e se deixava sacudir pelas lufadas
que vinham trazendo um cheirinho distante de terra molhada, morangos e
hortelã. Momentos de extrema alegria também ventavam, mas tinham um
outro caráter, e eram menos comuns, dada a personalidade de Amélia
naturalmente introspectiva e intelectual.
É claro que conforme ia crescendo Amélia se tornou uma pessoa
diferente, gostava das coisas normais de meninas, fotografia, música,
filmes e garotos, mas gostava também de ficar sozinha, de observar as
coisas pequenas acontecendo, alheias a todo o resto, falava pouco pra
uma mulher e era viciada em observar os outros, numa espécie de
bisbilhotice anônima, era como uma testemunha do tempo, não julgava e
nem condenava nenhum comportamento, apenas ficava ali olhando e
pensando de quais profundezas surgiam tantas palavras e confusão e
conflitos que adivinhava desnecessários. Em algumas épocas, quando
seu vento se tornava persistente e frio, com um cheiro pesado de maresia
ela se isolava e ficava por horas em seu quintal, olhando os insetos
existindo no gramado, ou ficava em seu quarto de adolescente, cheio de
pôsteres e fotos nas paredes, ouvindo the smiths e chafurdando em sua
melancolia, as vezes chorava um pouco, as vezes dançava sozinha e
escrevia cartas imaginárias, cartas de despedida para seus pais e amigos
e namorados.
A faculdade correu rápido com seus comemorativos habituais, bebidas,
algumas drogas, muitas festas e homens e seus relacionamentos complicados, não muitos mas sempre intensos, pelo menos para Amélia
que vivia tudo de forma verdadeira, até o fundo. O que assustava
algumas pessoas. Pois era uma mulher calma, sorridente, com voz quase
infantil, uma beleza delicada, mas que vivia sua vida de forma definitiva.
Somente seus olhos, ligeiramente estrábicos mostravam sua força e sua
intensidade desesperada em viver tudo aquilo que podia ser vivido.
Amélia tinha um defeito marcante, ela encarava as pessoas, de forma
quase perturbadora. Mas era divertido observar quanto tempo as
pessoas toleravam ser encaradas, até desviarem o olhar.
Em uma noite particular, na noite de seu trigésimo segundo aniversário,
sem festa, sem alarde, Amélia estava em seu apartamento, uma garrafa
de Chateau Margaux vazia no chão, numa cama grande em que ela
dormia só, como de costume, o velho cheiro da maresia foi chegando
devagar, entranhado entre os lençóis macios e o edredom fofo. Ela via,
num sonho colorido e em HD a velha praia solitária, as ondas faziam um
barulho distante e acolhedor, a areia escura estava encharcada e pesada,
parecendo asfalto molhado, uma gaivota voava sozinha sob as nuvens
baixas e seu grito ecoou pelo vazio, trazendo uma onda de saudades que
a invadiram de forma tão intensa que ela se viu ali, sentindo saudades de
uma vida não vivida.
Ela se viu nascendo e crescendo e vivendo em outros tempos, em outros
corpos, com outros sexos. As vezes se via sendo mãe e esposa, as vezes
ladra e cruel, uma artista bêbada e um calmo relojoeiro, vidas e mais
vidas sem nada de especial, sem nenhuma lição em especial, somente
vidas de pessoas comuns.
Com uma única constante além de sua própria consciência, a praia
Normanda que era o centro de seu universo indecifrável, tudo fluía e
confluía, num enorme emaranhado de relacionamentos circulares,
repletos de vida e de morte, um mistério além de qualquer explicação,
maravilhoso e único.
Amélia entendeu que só tinha que viver, era só isso que tinha a fazer, sem
mais angústias e sem mais solidão pois ela era a confluência de todas
aquelas vidas, era como se ela fosse o centro de um rede que tendia ao
infinito, se perdendo na eternidade e no mistério de tudo que existe...tudo
era daquele jeito desde sempre, algum laço se desfez e com ele todo o
medo se foi, definitivamente. Poderia ser feliz ou triste, solitária ou não,
não fazia mais diferença, tudo era impessoal, tudo estava bem, sempre
esteve bem, era essa a natureza das coisas.
Deitada, ela ainda dormia profundamente quando algumas lágrimas
fugiram de seus olhos, escorrendo pela face suavemente e seus cabelos
se agitavam ao vento que vinha de dentro dela, da praia que era ela, além
do espaço e de qualquer tempo, que não significavam mais nada..
...e ninguém viu esse milagre acontecer...além de mim.